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segunda-feira

Mar sem Fim naufraga na Baia Fields

Não tenho palavras, apenas coloco as palavras do Capitão!

5/4/2012
A partir das 11h40.
O navio Almirante Maximiano chegou em Fields às 12 horas para nos ajudar. O vento zunia a mais de 45, 50 nós. O navio brasileiro ficou ao largo, bem próximo da baía Fields, esperando o desenrolar dos acontecimentos.
Acabou sendo seriamente ameaçado pelo gelo. O vento fortíssimo fazia com que enormes blocos ameaçassem encurralar o navio. O Comandante Pinto Homem, em uma ação correta para salvar seu barco e tripulação, entrou em contato, via rádio, para informar que sairia em busca de abrigo ou seria preso irremediavelmente. Navegaram para a baía Potter onde fica a base argentina Carlini.
Enquanto isto, na base Fields, junto aos eficientes marinheiros chilenos, comandados pelo Capitão de Fragata Eduardo Rubilar Mancilla, nós aguardávamos a entrada do vendaval, torcendo para o Mar Sem Fim permanecer ancorado. O vento aumentava minuto a minuto. Eu e Plínio fomos convidados pelo comandante, acompanhado por seu segundo, Felipe Fuentes Lopez, para um uísque em sua sala privada.
O vento saltava de 50 para 60 nós. Depois 70, e em seguida bateu no pico: inacreditáveis 75 nós (cerca de 140 quilômetros por hora). E assim permaneceu por toda a noite e madrugada.
Eu e o Comandante Eduardo vestimos roupas apropriadas, capuz, luvas, óculos especiais, e fomos até a praia ver como reagia o Mar Sem Fim.
Foi quase impossível andar contra o vento. Era preciso fazer muita força, inclinar o corpo para frente, ajudar com os braços para conseguir equilíbrio, e forçar as pernas para avançar.
Um barulho ensurdecedor acompanhava o vendaval. Filme de terror em três dimensões. Ondas explodiam na praia tal qual bombas em filme de guerra. Os respingos subiam para alturas de 2 metros, em segundos, quando eram bombardeados pelo vendaval misturando-se na atmosfera a flocos de neve. Esta massa gasosa nos atingia com incrível violência.
Uma parte pequena de minhas orelhas ficou desprotegida pelo gorro. Doíam tanto, fustigadas pelo frio intenso (a sensação térmica era de menos 30ºC), que tive que cobri-las com as mãos ou teriam congelado. Ato contínuo perdi o equilíbrio que os braços, em posição de boxer, proporcionavam. Quase caí no chão arrastado pelo vendaval.
Fui ajudado pelo comandante. Fiquei grogue tão fortes eram os golpes do vento.
Depois de alguns minutos para avançar não mais que poucos metros, chegamos a um ponto onde era possível ver o Mar Sem Fim. Mas só Eduardo conseguiu enxergá-lo.
Eu não distingui o barco no meio daquela macabra algazarra.
Depois de fitar o Marzão por algum tempo, Eduardo virou-se para mim, aproximou sua boca a centímetros de meus ouvidos e berrou: “o barco está bem”. “Ele está parado no mesmo local (onde foi fundeado) e vai aguentar”.
Custei a acreditar. Mas confiei no Comandante. Voltamos.
Desta vez, com o vento pelas costas, quase saí voando. Ao levantar um pé para dar um passo minha perna foi atirada para a frente com tal violência que eu quase caí de costas. Parecia que eu tentava a jogada famosa de Leônidas da Silva: uma bicicleta.
Não encontro palavras fortes o suficiente para descrever a sensação. A maior montanha russa do mundo não proporciona cinco por cento da adrenalina que corria em minhas veias.
Pesadelo. Cenário medonho. Pra se tornar filme de terror só faltaram aparecer bruxas em vassouras, e duendes chifrudos gargalhando.
Meu coração batia tão forte que fiquei com medo de ter um infarto. Finalmente voltamos para dentro do abrigo de Fields.
Parabéns ao fundeio do Plínio. Só uma pessoa com a extraordinária habilidade náutica dele seria capaz deste feito. Ninguém mais, acreditem.
6/4/2012
Não sei como dormi. Aliás, nem sei se dormi. Coisas estranhas têm acontecido comigo. Desde que desembarquei em Fields, ao ir no banheiro, só consigo fazer xixi. O mais importante não sai… E não é por falta de alimentação. A comida de Fields é deliciosa. Coisa de restaurante. Ainda hoje almoçamos um salmão de lamber os beiços.
Em compensação passo a noite peidando estrepitosamente. Parece uma metralhadora. Pobre Alonso, dormindo na cama do beliche embaixo da minha…
Estou zonzo até agora. Ontem, depois da saída para ver o barco, ainda ficamos conversando e bebendo horas a fio com o Comandante Eduardo e seu simpático segundo, Felipe. Eles se entendem de tal forma que não precisam falar. Um olha pro outro e já sabe o que fazer. Impressionante.
Uma garrafa de Black Label depois, e estávamos íntimos. Minha gratidão a estes profissionais do salvamento marítimo, neste cenário a um só tempo apavorante e maravilhoso, é indescritível.
Tento dizer isto a eles, agradecer o que nos fazem, mas recusam polidamente. Correr riscos para salvar pessoas e barcos em perigo é apenas o trabalho que amam, ao qual se dedicam com total paixão. Sua modéstia não permite elogios. É apenas parte da rotina diária.
Durante a conversa, pensando nestes homens corajosos, de repente me vem à cabeça o poema de Bertold Brecht:
“Há homens que lutam um dia, e são bons;
há outros que lutam muitos dias, e são muito bons;
há homens que lutam muitos anos, e são melhores;
mas há os que lutam toda a vida, esses são os imprescindíveis!”
Assim são os chilenos de Fields: imprescindíveis.
Hoje cedo depois de sair da cama corri até a janela pensando no sofrimento que meu barquinho enfrentou. Quero saber se ele ainda está onde o deixamos. Com o coração na boca vejo que não. Esta manhã a baía Fields estava cercada por blocos de gelo trazidos pelo furacão da noite passada.
Estes gigantescos pedaços da Antártica empurraram o Mar Sem Fim um pouco mais para o lado esquerdo de onde havia sido fundeado. O barco está preso no gelo.
Meu querido Marzão, o barco que alegrou minha vida, um sonho realizado, cercado por gelo como de resto toda a baía Fields. Momentaneamente vencido. Não pelo vendaval, que ele soube enfrentar com galhardia quando bem tripulado. Mas por imensos blocos de gelo numa luta desigual, desproporcional.
Contra esta força bruta (blocos de gelo) anabolizada por 140 quilômetros de vento, não há o que fazer. O Mar Sem Fim ainda não está fora de combate. Apenas descansa levemente adernado. Quem sabe no próximo verão, com o degelo, ele recupere a liberdade que sempre teve e para a qual foi criado, e volte ao seu habitat natural: o mar.
A mim, e a meus companheiros, resta ajudá-lo. Foi o que fizemos logo em seguida ao café da manhã.
Há uma remota possibilidade de que o vento mude nos próximos dias tirando os blocos de gelo da baía e liberando o Marzão. Neste caso é preciso achar um local seguro para deixá-lo.
Na base chinesa Great Wall, aqui ao lado, há um molhe capaz de abrigá-lo durante o inverno que está prestes a congelar o mar. É preciso agir rápido.
Por sugestão do comandante Eduardo é para lá que vamos, pedir autorização ao chefe da base, Wang Dali.
Manhã movimentada. Enquanto esperávamos um carro da base Frei (aeronáutica chilena) que vai nos levar até metade do caminho, os russos de Bellingshausen – a base russa fica na mesma praia onde estão as bases Frei (aeronáutica chilena), e a Estação Marítima Bahia Fields (armada do Chile), entre eles o extraordinário Ruslan Eliseev, um dos melhores fotógrafos de natureza que já conheci (ele participou de nosso resgate no bote, junto com os chilenos) – entram de sopetão sala a dentro.
Foi engraçado. No mesmo momento eu estava ao telefone contando ao meu pai as peripécias de ontem, e a estratégia para hoje.
Eu dizia de nossa ida à base chinesa, que meu pai nem sabia que existia, quando chegaram estes vizinhos.
Descrevi o que via pelo telefone: “pai, agora os russos chegaram (eu pensava que iriam conosco), vamos ter que sair com os chilenos pra base chinesa”.
Silêncio perturbador do outro lado da linha.
Papai, que está com 86 anos, deve ter pensado que tomei algum alucinógeno afinal ele sabia apenas de chilenos.
- “Meu filho você se enganou. Você disse chi-ne-ses, frisou, em vez de chilenos”.
- “Não, pai, é que aqui há também uma base chinesa onde existe um molhe…E prossegui: “os russos vão com a gente”.
- “Quem?”
- “Os russos”.
- “Russos?” … “Que russos, meu filho?”
- “Olha, pai, além da possibilidade do molhe na base chinesa, há outra: um navio inglês está chegando, o HMS Protector, que talvez possa levar o Mar Sem Fim no convés. Mas antes vou falar com os chineses, junto com os chilenos e os russos”.
- Novo silêncio…
- “João, onde você está afinal? Russos, chineses. Agora ingleses? O quê está acontecendo?”
Ele não entendeu patavina, percebi. Prometi apenas que tão logo voltasse dos chineses ligaria e explicaria direito.
Preferi não contar que amanhã, em comemoração ao aniversário de Néstor Palma Belmar, encarregado do abastecimento de Fields, haverá um churrasco com a presença dos uruguaios da base Artigas…
A Antártica é uma Babel. Irreal. E, às vezes, totalmente surreal.
Em seguida saí com Plínio e o Comandante Eduardo. Os russos vieram apenas dar um alô. Na verdade eles saíram para perambular pelas redondezas curtindo o hobby a que se dedicam nos momentos de folga: fotografar ambiente antártico.
No carro, a caminho de Great Wall tornei a lembrar da conversa maluca com meu pai:
“Os russos chegaram vou ter que sair”. Imaginei a confusão provocada e caí na gargalhada. Me contorci de tanta risada. Cheguei a chorar de rir. Literalmente. Plininho, ao meu lado no carro, vendo a cena perguntou: ficou maluco?
Então contei sobre o telefonema. Rimos os dois. Foi bom pra desopilar o fígado.
Em poucos minutos chegamos à metade do caminho interrompido por uma barreira de neve que fechava a estrada. Teríamos que atravessar este pedaço a pé. Do outro lado um carro dos chineses (avisados na véspera) nos esperava.
Irreal. O carro dos “chinos”, como dizem os chilenos, é uma perua 4 por 4 australiana, portanto com a direção do lado direito. Pode?
Wang Dali, chefe da base chinesa, é baixinho, troncudo e careca. Muito simpático, ao nos ver caminhando, ele desceu do carro e veio nos cumprimentar.
O inglês dele é péssimo, tinha nos avisado o Eduardo. Ainda assim é o único dos “chinos” que arranha um inglês. Os outros só falam mandarim. Nos cumprimentamos efusivamente. Depois entramos no carro. O piloto, como não poderia deixar de ser, é destes chineses de filme: alto, magro, rosto fino, e barbicha. Um tipo Zen, lembra um pouco o personagem Gafanhoto, daquele antigo seriado de TV, Kung Fu. E também é muito simpático.
Na véspera Eduardo já tinha nos prevenido sobre a camaradagem entre todas as bases, e a língua franca daqui, o “antártico”.
O “antártico” é uma mistura da língua de cada país, representado por seus oficiais e pessoal de apoio, um pouco de inglês, mímica, gestos, e muita vontade de cooperar uns com os outros. De novo a solidariedade extrema que existe nestas bandas.
Chegamos na base cinco minutos depois. Uma graça o interior. Todo decorado com máscaras de ópera chinesa, bandeirinhas no teto, restos da festa da Primavera chinesa.
Os outros “chinos” se aproximam. Trocamos apertos de mão, cada um falando em sua língua. Nós em português, eles em mandarim, Eduardo em inglês, Wang Dali numa mistura de mandarim com inglês.
Sentamos em volta de uma mesa. Chá quente é servido. Começa a conversa.
Eduardo introduz em inglês: “Wang Dali, estes são os brasileiros do barco de que falei. Eles precisam usar seu molhe”.
“Yes”, diz o chinês. “Podem usar”. Consentiu.
Os outros “chinos” nos olham curiosos, exclamando: “Óh”, “óh”… à medida que vamos falando, eu e Plínio em inglês, contando nossa epopeia e a necessidade do molhe,
Wang Dali vai consentindo:
“Yes”, “Yes”.
Os outros em volta cochicham: “Óh”…
Então Wang traduz pro mandarim explicando o que rola aos companheiros.
Os “chinos” mais uma vez exclamam: “óh”, olhando bem fundo em nossos olhos, sorrisos estampados no rosto.
O “antártico” corre solto.
Eduardo explica sobre a Páscoa, o feriado religioso dos que professam a fé cristã.
“Óh”… exclamam os chinos sem entender bulhufas
Percebo que Wang não compreende o motivo do feriado.
Então, pra ajudar, explico num inglês bem pausado:
“Wang: this ho-li-day ha-pens to co-me-mo-ra-te the re-ssu-rec-tion of Je-sus Christ”.
“Ah”… diz Wang.
E olhando para seus companheiros em volta, curiosos, estende os braços, cada um para um lado, as palmas das mãos viradas para fora, deixa a cabeça pender para um lado ao mesmo tempo em que fecha os olhos, imitando a imagem de Cristo na cruz.
Os outros, em sinal de aprovação, exclamam em uníssono: “Óh”, “óh”…
Foi engraçadíssimo.
Conseguimos o molhe. Basta o gelo abrir e o Marzão poderá sair.
A ver.
Voltamos rapidamente para Fields.
Pouco depois, pelo rádio, nos chama o HMS Protector. Este navio da marinha britânica pegou ontem 168 nós de vento! Eu disse 168 nós! E durante a pancadaria fez exercícios de salvamento descendo o bote no mar. Acreditem se quiserem.
Eles não poderiam se aproximar da baía por causa do gelo. Também tinham avaliado o tamanho do Marzão (mandamos fotos via email) concluindo que não seria possível o transporte…
Só nos restam duas opções: o molhe chinês, caso o gelo se abra, ou deixar o Mar Sem Fim onde ele está por todo o inverno: preso no gelo, em plena baía Fields…
7/4/2012
Acordo pouco depois da oito da manhã. Nem bem saí do beliche quando Plínio voltou lá de fora, arrasado, e me abraçou: “ O Marzão naufragou”, disse, “só a proa está de fora”.
Foi um choque terrível. Um golpe. Um direto no queixo.
(Por falta de condições, houve trabalho frenético ontem em Fields, não foi possível concluir este texto.)
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